Os emergentes dos emergentes

Marcelo Côrtes Neri

A chamada nova classe média tem ocupado destaque na agenda das empresas privadas, dos gestores públicos, dos políticos e dos demais mortais no Brasil como em outros lugares. A pesquisa homônima a este artigo encontrada em www.fgv.br/cps/brics foi lançada ontem no seminário Oportunidades para Maioria, do BID, que visa formentar negócios na base da pirâmide. Abrimos a nova classe média brasileira pelas dimensões globais, nacionais, locais e atuais. Senão vejamos:
Global - Inicialmente, analisamos diferenças e semelhanças de grupos emergentes entre países emergentes. Especial destaque é dado ao grupo dos Brics, contrastando elementos diversos:
Quanto o crescimento macroeconômico se reflete no bolso do cidadão comum? O Brasil mais do que outros Brics, apresentou um crescimento de pesquisas domiciliares 11,3 pontos de porcentagem superior ao PIB acumulada no período 2003 a 2009. A novidade é que essa diferença tem aumentado. Mesmo no caso do "pibão" de 2010, que cresceu a 6,5% per capita contra 9.6% da renda da PME, a desaceleração do PIB do começo de 2011 não se reflete ainda no mercado de trabalho metropolitano em 2011 onde a renda domiciliar per capita do trabalho cresce a 6.1% acima novamente do PIB.
Abrimos a nova classe média brasileira pelas dimensões globais, nacionais, locais e atuais
Quem melhora mais em cada país: a base ou o topo da distribuição de renda? Para além da média, essas mesmas pesquisas permitem ver que a desigualdade de renda cai aqui e aumenta alhures. No Brasil já cai há dez anos seguidos, já entrando no 11º ano. Os 20% mais ricos do Brasil tiveram na década passada um crescimento inferior ao dos 20% mais ricos de todos os demais Brics, já nos 20% mais pobres acontece o oposto.
Para além de melhoras objetivas, como estão atitudes e expectativas das pessoas em relação ao presente e ao futuro?
Segundo o Gallup World Poll, o grau de satisfação com a vida no Brasil em 2009 era 8,7 numa escala de 0 a 10. Superamos os demais: África do Sul (5,2), Rússia (5,2), China (4,5) e India (4,5). Mais do que isso, o Brasil é o único dos BRICS que melhora no ranking mundial de felicidade, saindo do 22º lugar em 2006 para 17º em 2009 entre 144 países.
O Brasil é o recordista mundial de felicidade futura. Numa escala de 0 a 10, o brasileiro dá uma nota média de 8,70 à sua expectativa de satisfação com a vida em 2014 superando todos os demais 146 países da amostra cuja mediana é 5,6. Essa interpretação permite entender o Brasil: "o país do futuro" criada a exatos 70 anos atrás por Stefan Zweig. O sonho representa o espírito da nova classe média tupiniquim.
Nacional - Quanto cresceu em termos líquidos diferentes estratos econômicos da sociedade brasileira no período recente?
Desde 2003 um total de 50 milhões de pessoas - mais do que uma Espanha - se juntaram ao mercado consumidor. Nos últimos 21 meses até maio de 2011 as classes C e AB cresceram 11,1% e 12,8% respectivamente. Neste período 13,3 milhões de brasileiros foram incorporadas às classes ABC, adicionando-se aos 36 milhões que migraram entre 2003 e 2009.
Atual - Indicadores antecedentes sugerem melhoras. A última semana do mês de maio 2011 pela PME Semanal sugere viés de queda para pobreza e viés de alta para a classe AB em relação ao mês completo. Não há sinais de desaceleração trabalhista.
A taxa de redução de desigualdade nos últimos 12 meses é um pouco acima daquele observado nas séries da PNAD entre 2001 e 2009 no período de marcada redução da desigualdade. O comportamento anticíclico da desigualdade sugere a ausência de dilemas equidade versus eficiência no período sob análise.
Empregos Formais - O grande símbolo da nova classe média é a carteira de trabalho. Entre janeiro e abril de 2011 houve a criação líquida de 798 mil novos postos de trabalhos, o terceiro melhor desempenho desde 2000, ficando abaixo do mesmo período em 2010 (962 mil) e 2008 (849 mil). Não há sinal de desaquecimento trabalhista.
Local - Qual é a recordista de nova classe média? Onde a pobreza e a riqueza são maiores?
O município mais classe A é Niterói com 30,7% na elite econômica. Depois vem Florianópolis (27,7%), Vitória (26,9%), São Caetano (26,5%), Porto Alegre (25,3%), Brasília (24,3%) e Santos (24,1%).
Se formos menos elitistas e incluirmos as classes B e C no páreo, o município gaúcho de Westfália apresenta a maior classe ABC com 94,2% nas Classes ABC. Quase todos os 30 municípios com maiores participações nas classes ABC estão na região Sul do país, fruto da menor desigualdade de renda lá observada.
Quais são as prescrições de políticas para a nova classe média brasileira?
É preciso "Dar o mercado aos pobres", completando o movimento dos últimos anos quando pelas vias da queda da desigualdade "demos os pobres aos mercados (consumidores)". "Dar o mercado" significa acima de tudo melhorar o acesso das pessoas ao mercado de trabalho. Os fundamentos do crescimento econômico e as reformas associadas são fundamentais aqui. A educação regular e profissional funciona como passaporte para o trabalho. O desafio é combinar as virtudes do Estado com as virtudes dos mercados, sem esquecer de evitar as falhas de cada um dos lados.

Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, Fundação Getulio Vargas. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grammen brasileiro".mcneri@fgv.br.

Os Emergentes dos Emergentes: Reflexões Globais e Ações Locais para a Nova Classe Média Brasileira

Centro de Política Social, FGV
A chamada nova classe média tem ocupado destaque na agenda das empresas privadas, dos gestores públicos, dos políticos e dos demais mortais no Brasil como em outros lugares. Numa época de estagnação global observada depois da crise internacional, a ascensão econômica e social de dezenas de milhões de pessoas tem contribuído para manter a economia global girando. Em particular, os países dos BRICS que abrigam mais da metade dos pobres do mundo hoje, multiplicará até 2050 por 7 a sua relação com a renda gerada nos países do G7. No centro desta massiva transformação de pobreza presente em riqueza futura está a nova classe média dos BRICS que talvez seja a face humana mais palpável desta revolução. A presente pesquisa discute aspectos globais e locais da ascensão dos brasileiros.
Inicialmente a pesquisa analisa diferenças e semelhanças de grupos emergentes entre países emergentes. Especial destaque é dado ao grupo dos BRICS, contrastando elementos diversos tais como: Quanto o crescimento macroeconômico se reflete no bolso do cidadão comum? Quem melhora mais em cada país: a base, o meio, ou o topo da distribuição de renda? Em que medida as transformações observadas são sustentáveis no tempo? Para além de melhoras objetivas, como estão atitudes e ações das pessoas em relação ao futuro. Segundo alguns a nova classe média seria formada por protagonistas de plano de ascensão social, aqueles que almejam transformar sonho em realidade. Depois da crise global, qual é a expectativa da população de cada país sobre a respectiva satisfação com a sua vida no futuro? Em síntese, qual é a qualidade percebida pela população do crescimento das nações?
Passando do nível global ao local, mapeamos nos mais de 5500 municípios brasileiros a distribuição das classes econômicas pelo critério FGV. Chegando ao momento atual, a pesquisa pergunta quanto cresceu em termos líquidos diferentes estratos econômicos da sociedade brasileira no período recente? Acompanhando a trajetória de famílias individuais até maio de 2011, quantas progrediram, e quantas regrediram?  Quanto educação e trabalho explicam a ascensão de classes? Por fim, quais são os elementos centrais da agenda de políticas públicas e ações privadas para a nova classe média brasileira?

A revolução política no Nordeste

Luis Nassif

Coluna Econômica - 25/06/2011

Nos últimos anos houve uma revolução política no Nordeste, talvez pouco percebida quando olhada isoladamente. Houve uma mudança de geração, com jovens políticos substituindo antigos coronéis que dominaram por anos a cena local. Foi assim com Eduardo Campos, em Pernambuco, Marcelo Déda, em Sergipe, Teotônio Villela Filho, em Alagoas, Cid Gomes, do Ceará, Jacques Wagner, da Bahia, entre outros.

Essa renovação atingiu especialmente a antiga esquerda nordestina pré-64, que ainda sobrevivia dos mitos de Arraes, das Ligas Camponesas e das lutas sociais do período.

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Nenhum deles quer perder o antigo legado, que julgam honroso e histórico. Deda, por exemplo, fez questão de tomar posse no mesmo velho e abandonado palácio onde tomou posse o último governador sergipano antes de 1964, Seixas Dória. Neto de Arraes, Campos preserva com carinho a imagem do “painho” Arraes, cultivada por todo o interior de Pernambuco. Mas todos eles, indistintamente, representam uma ruptura com o antigo legado da esquerda, especialmente da nordestina.

“Nós defendemos a gestão, o planejamento, a busca de eficiência”, explica Deda. “Ajudamos a libertar a região das oligarquias locais mas não pretendemos entregá-la ao corporativismo: nosso projeto é atender a maior parte da população”.

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Agora mesmo, Deda enfrenta uma greve de professores, apesar de Sergipe pagar o quarto maior salário para professores do Brasil. E também problemas na Polícia Militar, que tem o segundo maior salário, atrás apenas do Distrito Federal. E isso devido a temas como responsabilidade social, políticas sociais universais, desenvolvimento e outros terem entrado definitivamente no seu repertório.

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O caso de Sergipe é emblemático. Até os anos 60 era controlado com mão de ferro pela família Augusto Franco. Nos anos 70, a urbanização de Aracaju permitiu o aparecimento de João Alves, um fenômeno local posto que negro, egresso do setor imobiliário – na ocasião o mais moderno do estado, mas despregado do poder do velho coronelato.

Alves empreendeu uma ampla modernização em Sergipe, com obras de infraestrutura, criação de um clima favorável à expansão de Aracaju, na época já beneficiada pelo avanço da Petrobras e da indústria extrativa mineral.

Depois, Alves acabou se aliando a Albano Franco, filho de Augusto. Conseguiu também a adesão de Jackson Barreto, egresso do grupo dos autênticos do velho MDB. Com isso, a oposição caiu no colo do PT. Deda aproveitou a onda, tornou-se deputado estadual, depois federal, prefeito de Aracaju e, em 2006, governador, derrotando Alves e Franco.

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O grande desafio atual é a montagem de uma estratégia de desenvolvimento para o Estado. E aí entra em jogo a questão da guerra fiscal – demonizado pelas forças do sudeste.

Sergipe é um estado com 22 mil km2 e 2,3 milhões de habitantes. A dimensão do seu mercado, por si, não atrai grandes grupos, ao contrário do vizinho Bahia que é quase um país.

A saída foi trabalhar com a ideia de Sergipe como posição estratégia para acessar parte dos mercados da Bahia, Alagoas e Pernambuco. O lema passou a ser: temos 2,3 milhões de consumidores em Sergipe e 30 milhões nos estados vizinhos, prontos para adquirir nossos produtos.

A estratégia logística

O segundo passo foi identificar as cadeias produtivas mais promissoras: fertilizantes, alimentos, calçados, têxteis, gás e petróleo. Para tanto, foi fundamental desenvolver a infraestrutura de estradas com os investimentos do PAC, especialmente na BR 101 (norte-sul) e 235 (leste-oeste) e acrescentou mais R$ 400 milhões de recursos próprios para recuperar as demais rodovias estaduais, dando ênfase àquelas que iam aos estados vizinhos.

Qualidade de vida

Acenou-se também com as condições de vida do estado e de Aracaju. Hoje em dia, Sergipe disputa com Rio Grande do Norte o título de melhor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do nordeste, além de maior PIB per capita da região. Além disso, em todas essas décadas houve avanços. Hoje em dia a atividade rural representa apenas 7% do PIB, dominado por serviço, indústria extrativista e indústrias manufatureiras tradicionais.

Revolução social

As políticas sociais beneficiaram Sergipe, assim como outros estados nordestinos. O grande fator a injetar recursos na região, segundo Deda, foi o aumento do salário mínimo. E também o avanço do minifúndio. A agricultura familiar passou a ter um papel fundamental na economia sergipana. Visitei o estado nos anos 90. A política social na época consistia em dar um casal de bodes para cada família no campo.

Agricultura familiar

O grande fenômeno no estado foi ter se tornado o segundo maior produtor de milho do nordeste, com 60% da produção proveniente da agricultura familiar, parte considerável das quais de assentamentos de reforma agrária. Para contornar a burocracia do INCRA, Deda acertou direto com a Presidência da República o assentamento de 1.100 famílias, fazendo em um ano o que o INCRA levaria no mínimo dez.

Incentivo fiscal

Em todo esse processo, foi fundamental uma política de incentivos fiscais – caso contrário nenhuma empresa viria para o nordeste. Agora, já se tem um mercado razoável, a infraestrutura melhorou, a região está mais próxima do mercado externo, África, Estados Unidos e Europa. Deda sabe que o sistema de incentivos esgotou, na medida em que todos os estados passaram a recorrer a ele. Mas considera que a mudança tem que ser gradativa

A escolha de Sofia?

José Luis Oreiro
Valor Econômico - 24/06/2011

Algumas visões ortodoxas sustentam que para que o país possa ter uma taxa de juros mais baixa seria necessário: 1) acabar com a acumulação de reservas internacionais por parte do Banco Central (BC) e aprofundar o processo de conversibilidade do Real, o que levaria a uma maior valorização da taxa real de câmbio de forma a atrair a poupança externa necessária para o "equilíbrio macroeconômico"; ou 2) aumentar a poupança doméstica por intermédio da redução do grau de cobertura do Estado do Bem-Estar Social, uma vez que as políticas sociais atuais geram incentivos contrários à abstenção de consumo presente, contribuindo assim para uma baixa taxa de poupança doméstica.

O argumento se baseia no seguinte raciocínio. Em função da estrutura perversa de incentivos à abstenção de consumo presente, devido à ampla cobertura previdenciária, a taxa doméstica de poupança no Brasil é baixa, de maneira que o equilíbrio macroeconômico entre oferta e demanda agregada exige uma elevada taxa real de juros, criando um grande diferencial positivo entre a taxa de juros doméstica e a taxa de juros internacional.

Numa economia aberta com mobilidade de capitais, esse diferencial de juros cria enormes incentivos para a entrada de capitais especulativos, os quais tendem a apreciar a taxa real de câmbio. Esta apreciação incrementaria as importações e reduziria as exportações, aumentando o déficit em conta corrente, o qual seria financiado com poupança externa. À medida que o câmbio se aprecia e a poupança externa flui para o país, contudo, a demanda doméstica passa a ser direcionada para bens produzidos no exterior, diminuindo a pressão sobre a oferta de bens disponíveis, o que permite a manutenção de uma taxa de inflação estável com juros mais baixos.

"Parece pouco plausível que o problema do juro alto se deva à falta de poupança doméstica."

Assim, sustenta-se que, com o fim da política de acumulação de reservas combinado com a plena conversibilidade do real, a economia irá alcançar um novo ponto de equilíbrio no qual os juros reais serão mais baixos e o câmbio será mais valorizado do que na situação inicial. O corolário desta política é que a nova taxa real de câmbio de equilíbrio será provavelmente muito baixa para dar garantias mínimas de sobrevivência à indústria nacional. O país estaria condenado, portanto, à desindustrialização.

Logo, a eliminação do problema "juro alto, câmbio valorizado" requer que o governo e a sociedade brasileira façam uma escolha entre desindustrialização e fim do Estado do Bem-Estar Social, uma verdadeira "escolha de Sofia".

O governo atual tenta - segundo a perspectiva ortodoxa - escapar desse dilema por intermédio da política de acumulação de reservas conduzida pelo Banco Central. Quando o BC compra reservas, e as esteriliza por intermédio de operações compromissadas, ocorre um aumento da demanda por moeda estrangeira, a qual produz uma elevação "artificial" do preço da mesma, de maneira a se produzir uma taxa real de câmbio subvalorizada.

Essa desvalorização artificial do câmbio impede o aumento da poupança externa, travando assim o processo de ajuste "natural" pelo qual a demanda doméstica se equipararia a oferta disponível, o que permitiria a redução da taxa real de juros. Logo, a política de acumulação de reservas consegue impedir (parcialmente) a valorização natural da taxa real de câmbio, à custa da manutenção da taxa real de juros em patamares elevados na comparação com outros países. Essa política de acumulação de reservas, contudo, tem um elevado custo fiscal, em função do alto custo de carregamento dessas reservas, resultado do diferencial entre a taxa de juros doméstica e a taxa de juros internacional.

A argumentação acima tem quatro premissas fundamentais e uma conclusão empiricamente testável. A primeira premissa é que a oferta doméstica de bens é inelástica a longo prazo, de forma que um aumento da demanda agregada autônoma exige um aumento da taxa real de juros para que se mantenha o equilíbrio macroeconômico, ou seja, uma taxa de inflação constante e estável. A segunda é que o Brasil sofre de um problema estrutural de escassez de poupança doméstica devido aos incentivos perversos criados pela Constituição de 1988, os quais estimulam o consumo presente em detrimento da poupança e do consumo futuro. A terceira é que a apreciação do câmbio real gera um aumento da taxa de poupança externa, sem que haja uma redução da taxa de poupança doméstica. Assim, a apreciação da taxa real de câmbio permite um aumento da poupança agregada da economia, não havendo substituição de poupança doméstica por poupança externa. A quarta é que o elevado risco cambial, causado pelo alto risco de conversibilidade, que por sua vez aumenta os custos de hedge, contribui para que a taxa de juros doméstica seja superior as taxas internacionais.

"A liberalização financeira não apresenta os resultados esperados sobre o crescimento."

A conclusão, que é empiricamente testável, é que a economia brasileira se encontra hoje com uma taxa de câmbio sub-valorizada. Argumentamos que as quatro premissas são questionáveis, ao passo que a conclusão empiricamente testável é rejeitada na maior parte dos estudos existentes.

A inelasticidade da oferta agregada a longo prazo parece indicar que para visão ortodoxa a economia opera com pleno emprego da força de trabalho ou que, pelo menos, a economia está com uma taxa de desemprego próxima ao que se denomina de NAIRU, ou seja, taxa de desemprego para a qual a inflação não se acelera. Com efeito, a economia brasileira tem registrado nos últimos meses (mas não durante todo o governo Lula) níveis bastante baixos de desemprego, o que tem levado vários economistas a afirmar que o Brasil vive, hoje em dia, um estado de pleno emprego de fato.

A argumentação se baseia explicitamente na hipótese de que a oferta agregada é inelástica1, logo o pleno emprego deve ser a "norma" e não o caso fortuito2. Tendo em vista que o Brasil convive há vários anos com o problema "juro alto, câmbio valorizado" não nos parece correto basear toda uma argumentação lógica em cima de um pressuposto que, se for válido, aplica-se apenas ao período bem mais recente da economia brasileira. De fato, o pleno emprego certamente não tem sido a norma no Brasil desde o início dos anos 80.

A premissa de que o Brasil sofre de um problema de escassez crônica de poupança doméstica devido aos incentivos perversos produzidos pela Constituição de 1988 também parece não ser uma hipótese plausível. Do ponto de vista da teoria keynesiana, tal como os gastos agregados determinam a renda global da economia, o poupança agregada resulta das decisões empresariais de investimento.

De fato, ao observarmos o comportamento da taxa de investimento e da poupança bruta no Brasil entre o primeiro trimestre de 2000 e o primeiro de 2011, constatamos que: 1) as flutuações da taxa de poupança são mais intensas do que as flutuações da taxa de investimento; mas, grosso modo, as flutuações da última acompanham as flutuações da primeira, e 2) a taxa de poupança bruta apresenta dois momentos de intensa variação, a saber, entre o primeiro trimestre de 2003 e o primeiro de 2004, período no qual ela apresenta um forte aumento de 4%; e o primeiro trimestre de 2008 e o primeiro trimestre de 2009, período em que a taxa de poupança sofre uma redução bastante significativa de 4,2%.

Essas mudanças súbitas na taxa de poupança bruta não podem ser atribuídas a mudanças no Estado do Bem-Estar, mas sim a evolução da taxa real de câmbio, da taxa de inflação e da política tributária do governo. Com efeito, o início do governo Lula se caracterizou pela combinação de taxa real de câmbio depreciada e taxa de inflação relativamente alta (ainda que em declínio), fatores que combinados deprimem o salário real, produzindo assim uma redução do consumo privado e, consequentemente, um aumento da poupança doméstica privada. Entre 2008 e 2009, a redução da taxa de poupança pode ser explicada pelas medidas temporárias de desoneração tributária para estimular o consumo de alguns bens duráveis de maneira a combater os efeitos da crise financeira mundial.

Findos os programas de redução temporária de tributos, observa-se uma recuperação significativa da taxa de poupança bruta, a qual aumenta 2,2% entre o primeiro trimestre de 2009 e o primeiro de 2011.

Além disso, parece ser pouco plausível que o problema do juro elevado no Brasil se deva à escassez de poupança doméstica. Com efeito, se essa explicação fosse correta, então a taxa real de juros de longo prazo deveria ser muito alta para os padrões internacionais, o que não acontece. Com efeito, o contrato de DI futuro/swaps com vencimento em julho de 2014 estava pagando um juro real ex-ante de 7,4% ao ano no dia 14/06/2011. Trata-se de um juro elevado, mas não absurdo na comparação com outros países em desenvolvimento.

Na verdade o problema brasileiro é que a taxa real de juros de curto prazo é muito alta para os padrões internacionais. Isso não tem nada a haver com uma alegada escassez de poupança doméstica, mas com a forma de rolagem da dívida pública brasileira herdada do período de inflação alta.

A razão fundamental para a persistência de um juro real tão elevado deve-se, em parte, ao fato de que nosso país é o único no mundo onde o mercado monetário e o mercado de dívida pública estão conectados por intermédio das chamadas Letras Financeiras do Tesouro, a "jabuticaba" brasileira, as quais respondem por cerca de 35% da dívida federal. A existência desses títulos faz com que a taxa de juros que a autoridade monetária utiliza para colocar a inflação dentro da meta definida pelo CMN seja a mesma taxa de juros que o Tesouro paga por uma fração considerável da dívida pública.

Assim, a taxa Selic é obrigada a cumprir duas funções: ela é a taxa de juros que regula os empréstimos no mercado interbancário, ao mesmo tempo é a taxa pela qual o Tesouro rola uma parte significativa da dívida pública. Como a mesma taxa de juros precisa desempenhar duas funções, segue-se que a função de instrumento de política monetária acaba sendo contaminada pela função de rolagem da dívida pública federal, e vice-versa, uma vez que o BC não tem como fixar um valor da Selic para as operações no mercado interbancário e outro valor da Selic para as operações de rolagem da dívida pública.

Nesse contexto, a fragilidade ainda remanescente das contas públicas brasileiras acaba por fazer com que a taxa de juros requerida pelo mercado para a rolagem da dívida pública seja "excessivamente alta", sendo transmitida, por arbitragem, para as operações normais de política monetária. Alternativamente, o comportamento da política monetária (com viés de alta na taxa de juros) igualmente pode contaminar a rolagem da dívida pública.

Deve-se ressaltar que propalada melhoria da situação fiscal do governo tem sido exagerada: não só o setor público consolidado continua gerando expressivos déficits nominais (3,3% do PIB em 2009 e 2,6% do PIB em 2010), como os juros nominais da dívida (5,4% do PIB em 2009 e 5,3% 2010) superam em muito o superávit primário (3,3% do PIB em 2009 e 2,6% em 2010).

Dessa forma, o Estado brasileiro ainda possui uma postura financeira "Ponzi", ou seja, as receitas líquidas do governo não são capazes de cobrir a totalidade das despesas de juros3, o que eleva o risco de financiamento do Tesouro, aumentando assim o poder de mercado dos compradores de títulos, os quais podem exigir taxas de juros mais altas para a colocação dos papéis do governo.

A premissa de que não existe substituição de poupança doméstica por poupança externa nos parece também bastante questionável4. Isso porque uma apreciação da taxa real de câmbio induz um aumento - este sim artificial - do salário real e da participação dos salários na renda. Como a propensão a consumir a partir dos salários é maior do que a propensão a consumir a partir dos lucros, segue-se que uma apreciação da taxa real de câmbio irá produzir uma redução da taxa de poupança doméstica, anulando total ou parcialmente o efeito do aumento da poupança externa sobre a poupança agregada da economia.

A premissa de que o risco de conversibilidade contribui para elevar a taxa de juros doméstica é igualmente questionável5. Se existe um assunto que tem sido fortemente questionado pela literatura internacional, e até por instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), são os supostos benefícios da liberalização financeira para os países em desenvolvimento. Mercados financeiros e cambiais em países emergentes se defrontam frequentemente com o problema de integração financeira internacional assimétrica: seus mercados são estreitos vis-à-vis o volume dos fluxos de capitais, podendo torná-los em certas circunstâncias bastante instáveis, com efeitos instabilizadores sobre a taxa de câmbio, já que o comportamento dos investidores externos é em boa medida determinado por fatores exógenos.

Assim, a existência de um volume de reservas cambiais elevado e/ou a possibilidade de se implementar controle de capitais quando a circunstância convir podem sinalizar aos investidores o compromisso do governo de manter um razoável ordenamento no mercado de divisas, contribuindo para sua maior estabilidade. As evidências empíricas sobre os benefícios do processo de liberalização financeira sobre crescimento econômico e estabilidade macroeconômica no Brasil não apresentam os resultados esperados pelos defensores da liberalização6.

Quanto ao argumento de que a taxa de câmbio encontra-se subvalorizada, sustentado por alguns economistas ortodoxos7, estima-se normalmente um modelo de determinação da taxa real de câmbio de equilíbrio, onde o câmbio de equilíbrio depende dos termos de troca e do passivo externo líquido. Nesse modelo, o câmbio real no Brasil encontra-se 5% acima do valor de equilíbrio, ou seja, a situação prevalecente na economia brasileira seria, nesse caso, de câmbio sub-valorizado. Essa conclusão é contrária a uma boa parte da literatura brasileira que trata do tema em consideração.

O problema de tais modelos é que eles ignoram a dimensão doméstica do conceito de taxa real de câmbio de equilíbrio8, a qual é definida como aquele nível da taxa real de câmbio que garante simultaneamente o equilíbrio externo (déficit em conta corrente sustentável no longo prazo) e o equilíbrio interno (economia operando com pleno emprego e inflação estável). Dessa forma, não é de surpreender que nas estimativas convencionais a dinâmica da taxa real de câmbio de equilíbrio seja praticamente idêntica à dinâmica da taxa real de câmbio efetiva, fazendo com que os episódios de desalinhamento cambial, quando ocorrem, sejam de reduzida magnitude e baixa persistência temporal.

Concluímos a argumentação ortodoxa sobre a taxa de juros é questionável do ponto de vista de sua fundamentação teórica e empírica, e que a economia brasileira não parece estar fadada a uma "escolha de Sofia" entre a desindustrialização e o fim do Estado do Bem-Estar Social.

1 As evidências empíricas disponíveis para a economia brasileira mostram que o regime de crescimento prevalecente no Brasil é puxado pela demanda agregada, conforme Oreiro,J., Souza, G. e Nakabashi, L.(2010). "A economia brasileira puxada pela demanda agregada". Revista de Economia Política, vol. 30, n.4.

2 O equilíbrio com pleno emprego, embora seja uma possibilidade lógica, é apenas uma entre "n" posições de equilíbrio numa economia capitalista, uma vez que as economias de mercado não possuem mecanismos endógenos capazes de garantir a convergência à posição de equilíbrio com pleno emprego.

3 Isto não quer dizer que o Estado brasileiro esteja insolvente, pois ele tem capacidade de se financiar no mercado. A solvência do Tesouro depende de uma série de fatores, como o comportamento da taxa de crescimento do PIB, superávit primário, taxa Selic e a composição da dívida pública.

4 A hipótese de que a poupança doméstica e a poupança externa são substitutas é desenvolvida em Bresser-Pereira, L.C. (2009), Globalização e Competição. Elsevier.

5 A chamada hipótese Arida-Bacha-Resende segundo a qual o problema do juro alto no Brasil está relacionado com a conversibilidade incompleta do Real, foi objeto de amplo debate na Revista de Economia Política.

6 Ver, entre outros, Paula, L.F. (2011). Financial Liberalization and Economic Performance: Brazil at the crossroads. Routledge.

7 Ver, entre outros, Pastore, A.C; Pinotti, M.C; Almeida, L.P (2008). "Câmbio e crescimento: o que podemos aprender?" In Brasil Globalizado. Elsevier.

8 Conforme Nurkse, R. (1945). "Conditions of international monetary equilibrium". Essays in International Finance 4. Princeton University Press.

José Luis Oreiro, com Luiz Fernando de Paula é professor do Departamento de Economia da UnB e diretor da Associação Keynesiana Brasileira (AKB) e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e presidente da AKB, respectivamente.

Infidelidade partidária, mitos e realidades - CELSO ROMA

Poucos acontecimentos da política brasileira têm sido tão condenados quanto a infidelidade partidária. O debate ressurgiu há poucas semanas, após a divulgação de notícias envolvendo a fundação do PSD (Partido Social Democrático) e a adesão de políticos à legenda recém-criada.

As críticas têm como base a suposição de que, quando um mandatário troca de partido, ele necessariamente burla a lei, distorce o resultado das urnas e trai seus eleitores.

Entretanto, nenhuma evidência maior confirma qualquer uma dessas hipóteses.
Nos casos de fundação de partido político, violação de direito político ou descumprimento do estatuto partidário, a legislação tem brechas que permitem ao mandatário se desligar do partido sem que isso seja considerado irregular.
Exceções ao conceito de fidelidade partidária devem ser toleradas, sobretudo em um sistema político que, num passado recente, esteve subjugado pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos, de 1971, sancionada pelo presidente Emílio Médici no auge da ditadura, com a finalidade de limitar o direito de associação política e dar poderes draconianos às cúpulas dos partidos.

A infidelidade partidária também não produz os efeitos negativos que se atribuem a ela, como inverter a correlação de forças políticas. Prova disso é que a intensa movimentação entre os partidos não alterou a composição das mesas diretoras ou as presidências de comissões da Câmara, segundo atesta Marcelo Costa Ferreira, professor da Unifesp, em artigo da "Revista de Sociologia e Política".

O eleitor não tem o voto desvirtuado quando o seu representante troca de partido. Na Câmara, por exemplo, os deputados migrantes marcam a mesma posição política observada no partido pelo qual se elegeram, ou seja, eles mudam de partido, mas mantêm as ideias e o padrão de votos, segundo aponta meu artigo na "Dados - Revista de Ciências Sociais".

Ao contrário do que se imagina, a migração partidária apresenta aspectos positivos.
Os parlamentares, quando têm a possibilidade de trocar de partido, escolhem o que melhor corresponda ao objetivo da carreira política, o que contribui para corrigir erros de filiação, conforme sugere Scott Desposato, professor da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos.

Isso é tão verdadeiro que a interferência do Poder Judiciário na questão teve efeito colateral: os partidos se tornaram menos coesos na esfera parlamentar.

Desde 2007, quando o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu que o mandato pertence ao partido, PT, PMDB, PSDB e DEM registram aumento da indisciplina dos filiados nas votações da Câmara dos Deputados, como demonstrou o pesquisador Saul Cunow no encontro da Western Political Science Association, no Canadá.

Embora a infidelidade partidária pareça ser ruim para o sistema político do país, não é.

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CELSO ROMA, 36, cientista político e doutor pela USP, é especialista em partidos políticos e eleições.

A realidade política brasileira


O Centro de Referencia do Interesse Público (CRIP) reúne um conjunto de professores da Universidade Federal de Minas Gerais das áreas de ciência política, filosofia e história que partilham um diagnóstico sobre a realidade política brasileira. Na nossa opinião, o Brasil foi constituído a partir de uma fraca noção de identidade pública e sob a batuta de interesses privados muito fortes. O nosso estado é um estado forte demais para conceder favores e fraco demais para estabelecer com clareza os limites entre o público e o privado, especialmente para os poderosos. Fenômenos como o que assistimos na semana passada, de um ministro da Casa Civil afirmar que fez aquilo que todos fazem, isso é, negociou informações e acesso privilegiado ao estado com grandes grupos econômicos, são parte do dia a dia da política brasileira. É verdade que a opinião pública se indigna com razão a cada um destes episódios, mas a verdade é que a sua raiz reside em aspectos quase estruturais da cultura brasileira. Uma incapacidade de construir uma noção forte daquilo que é público na política.
O CRIP pretende tratar acadêmica e politicamente dos fenômenos da corrupção e da organização da Justiça no Brasil. No que diz respeito à corrupção, temos aplicado anualmente, desde 2008, pesquisas de opinião sobre o problema, tentando produzir medidas de longo prazo e comparativas sobre o fenômeno, algo que inexiste hoje no país. Ao longo destas pesquisas, três resultados importantes foram revelados: o primeiro deles é que a população brasileira na sua esmagadora maioria (73%) acha a corrupção um fenômeno grave ou muito grave; o segundo é que a população não acredita que a corrupção aumentou durante os últimos anos – que ocorreu foi que ela passou a ser mais investigada, especialmente pelas operações da Polícia Federal; e em terceiro lugar, a população identifica corretamente que a instituição que mais abriga a corrupção é o Poder Legislativo, com os Legislativos municipais capitaneando o processo.
Vale a pena comentar alguns destes resultados. De fato, a população brasileira aumentou a sua atenção e a sua rejeição à questão da corrupção nos últimos anos. No entanto, têm faltado à população os meios para melhorar a qualidade do sistema político brasileiro. Estes podem vir ou através de iniciativas da sociedade civil ou através de mudanças na legislação e aprimoramentos institucionais que impliquem em melhorias no controle da corrupção. Dentre as diferentes iniciativas que são possíveis, uma se destaca devido à sua origem na sociedade civil: a proposta da lei da ficha limpa. É sabido que o Brasil tem uma das concepções mais estapafúrdias do mundo acerca da presunção da inocência pela via do assim chamado “transitado e julgado”. Até recentemente, a condenação de um político em três instâncias do Poder Judiciário não tinha absolutamente nenhuma conseqüência em relação às suas ações, ou seja, ele continuava livre e podia ser candidato. A Justiça não produzia praticamente nenhum efeito em relação às ações dos políticos, especialmente em relação àqueles que se habilitam ao foro especial. A ficha limpa veio com a intenção de modificar este estado de coisas. Ela propôs a impossibilidade de concorrer a um mandato depois de uma primeira condenação em segunda instância.
A importância desta lei não pode ser subestimada quando cruzamos com a percepção da população sobre a corrupção. A percepção da população, corretamente, é que a corrupção tem maior incidência no Poder Legislativo. Os problemas tratados pela ficha limpa restringem as candidaturas principalmente a este Poder. Esse pode ser um bom início para uma agenda que interessa aos membros do Centro do Interesse Publico e que estaremos discutindo neste Fórum que é: quais modificações podem fazer com o sistema político brasileiro se torne menos corrupto? Sabemos que algumas mudanças podem ajudar como é o caso da mudança nas regras de financiamento de campanha. Mas não temos ilusões. É preciso mudar a maneira como o Judiciário brasileiro funciona para que a corrupção no país diminua. Esse é o segundo tema que pretendemos tratar neste fórum.
A questão do papel do Judiciário na sociedade brasileira é bastante complexa. Até 1988, era o mais fraco dos três Poderes e o que menos se afirmava frente ao Executivo. Depois de 1988, o judiciário recuperou fortemente suas prerrogativas, ao mesmo tempo que o Congresso Nacional continuou a perder as suas. Hoje há um forte processo de judicialização no país firmemente calcado no artigo 102 da Constituição e sua regulamentação posterior, que ampliou fortemente os atores que podem arguir a inconstitucionalidade, incluindo desde a OAB, aos partidos e associações de classe. Assim, ocorreu um forte aumentou do conjunto de questões que chegam ao STF para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade. Ao mesmo tempo, a Constituição não alterou fortemente a estrutura de privilégios e recursos que, como sabemos, entrava o Judiciário brasileiro. Pelo contrário, o uso recorrente do Judiciário por certo atores, especialmente pelo próprio Estado e grandes atores econômicos torna a Justiça brasileira muito lenta e permite a impunidade, que é hoje uma das grandes preocupações da sociedade brasileira. Sabemos que em janeiro de 2011 o estoque de ações no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo alcançava a marca de 18 milhões de processos, entre os quais 10 milhões ligados à execuções fiscais municipais, uma grande parte delas de baixo valor. A incapacidade do Poder Judiciário de responder aos reclamos da sociedade contra a impunidade, em particular, contra a impunidade daqueles que cometem crimes contra o erário público, é hoje uma das maiores ameaças à legitimidade das instituições políticas no país.
Vale a pena analisar algumas iniciativas que podem ter um impacto positivo, tanto no combate à corrupção quanto na impunidade geral que graça em relação aos membros do sistema político. Trata-se da lei da ficha limpa e da assim chamada “emenda Peluso”. Em ambos os casos, trata-se de revisar fortemente a ideia do transitado em julgado brasileiro de maneira que condenações de segunda instância tenham de fato efeito e penas comecem a ser cumpridas. No caso da ficha limpa, vale a pena perceber que ela expressa uma tentativa da sociedade civil brasileira, através do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral de intervir no processo político de modo. Neste caso, trata-se não apenas de romper com uma tradição de impunidade que, no caso do sistema político é mais ampla, devido à lentidão adicional causada pelos forus especiais, como também de qualificar uma dimensão mais republicana do Estado. O critério para alguém ser candidato e servir ao poder público deve estar além da simples dúvida processual a qual cabe um recurso. Há no “ser candidato” ou no “ser membro do sistema político” uma dimensão de responsabilidade com o dever público que a lei precisa contemplar. No caso da emenda Peluso, a questão mais importante é fazer com que um padrão mínimo de igualdade penetre no funcionamento do sistema de justiça no Brasil impedindo que aqueles que têm acesso a bons advogados possam se manter indefinidamente em liberdade, independente da culpa. O caso Pimenta Neves, finalmente resolvido recentemente, é o melhor exemplo da utilização do sistema de Justiça com o objetivo da impunidade.
O membros do CRIP, Centro de Referência do Interesse Público, irão no fórum, que ora instalamos em parceria com a Carta Capital, tratar destas questões a partir de perspectivas plurais, envolvendo a ciência política, a filosofia, a história e os estudos sobre cultura. A cada semana um dos membros do CRIP e ou parceiros que têm trabalhado conosco nas nossas principais publicações – Reforma Política no Brasil e Corrupção: Ensaios e Crítica – irão ocupar o fórum para tratar de um destes problemas levantados acima na perspectiva do Interesse Público. Acreditamos que o fórum constitui um excelente momento para o estabelecimento desta parceria que pretende aprofundar temas que frequentemente são abordados pela imprensa, mas não são aprofundados. Estes artigos terão como objetivo aprofundar o debate público sobre os temas do controle da corrupção e do acesso ao Judiciário. Sendo assim eles pretendem reforçar uma tradição de jornalismo independente e bem informado que tem sido a marca da revista “Carta Capital”.